Ela é uma jovem mulher de classe média. Cabelos lisos e pretos. Não vou lhe dar nome. Deixarei o nome da minha primeira personagem para os meus leitores. Um pouco, porque não consigo pensar em um nome adequado, outro "tanto" porque mulheres que fazem a diferença nas periferias existenciais podem possuir qualquer nome, pois carregam em si a mística dessa luta milenar pela sobrevivência.
Os cabelos lisos são compridos, como é de se esperar das jovens mulheres de classe média de sua época.
Rosto claro, traços delicados, dava uma impressão angelical, lembrando a imagem que muitos(as) católicos(as) fazem de Maria, mãe de Jesus.
Muitos dirão que é apenas um modelo de beleza pré estabelecido por padrões dominantes e exigências de uma sociedade estruturalmente machista e racista. Outros dirão que existe verdadeiramente uma beleza mística nestes rostos cuja genética possibilitou tais traços.
Eu que sou múltipla, tendo a acreditar que as duas interpretações estão corretas, apesar das contradições existentes. De alguma forma misteriosa, dentro do processo de formação humana, essas duas visões se relacionam.
Teríamos um encantamento "natural" quando, a fragilidade acompanhada de sensibilidade e por uma beleza socialmente aceita, chega até nós?
Deixemos essas reverberações de lado e retornemos à minha primeira personagem. Como outras mulheres de sua época, estudou Pedagogia e se tornou profissional da educação. Mais tarde se torna diretora de escola.
Isso sim, era uma condição socialmente posta. Temos nos esquecido que, até bem pouco tempo atrás, a profissão da mulher na sociedade estava limitada ao trabalho doméstico e educacional.
Quis o destino que ela encontrasse como parceiro um político importante da cidade. Ninguém nunca entendeu o que eles tinham em comum. Mas, vida que segue….
Política é sempre um lugar desafiador. Mas tenho a impressão que nas cidades do interior ela adquire um aspecto peculiar, pois o pessoal e o político se misturam com mais frequência.
As normas da educação permitiam que as(os) diretoras(es) fossem transferidas(os). Quando o marido perdeu a eleição, no mesmo ano, foi inaugurada uma escola de ensino fundamental na periferia. Mas não era qualquer periferia. Era o bairro da fronteira, onde a periferia de uma cidade se encontra com a periferia de outra.
Vou explicar com detalhes para as minhas leitoras de classe média. O bairro da fronteira é a terra de ninguém - é o lugar onde ninguém quer estar - nem professores, nem profissionais da saúde e nem mesmo policiais. Normalmente é onde acontecem os crimes mais violentos. É a versão atual do "Velho Oeste". É a atualização contemporânea de todos os conflitos da humanidade. As estatísticas da violência do município deixavam isso claro. Esses bairros são considerados a antessala do inferno.
E, foi exatamente para a escola nova desse bairro que nossa personagem foi enviada. Entre as pessoas que conheciam a realidade e a nossa personagem, ressoava um burburinho assim:
“ELA NÃO VAI CONSEGUIR, NÃO DURA TRÊS MESES. SE ELA SOUBESSE O QUE VAI ENCONTRAR. NÃO VAI SOBREVIVER. NÃO DURA TRÊS MESES.”
E assim, ela chega na nova escola. Ninguém "botava fé", ninguém esperava nada de bom, nem mesmo a equipe de trabalho. A escola era nova e bonita, um enfeite arquitetônico entre um caos de violência. A pergunta era QUANDO esse "mar de VIOLÊNCIA" atingiria a escola e a transformaria em mais uma imagem fosca da degradação existente em torno.
Tentou falar, não foi ouvida. Sua voz suave não conseguia se sobrepor à desesperança ao seu redor.
E ainda na primeira semana, entre desespero e desolação, a alma sensível da minha personagem olha em volta. Inicialmente não viu nada. Apenas as lágrimas que pareciam querer sair de seus olhos, confirmando a fraqueza que todos anteviam. Ficou ali parada, CONTEMPLANDO o vazio do pátio escolar, quando vislumbrou um jardim em um espaço que estava vazio.
E pensou consigo: “Se já não havia nada a fazer e a tendência era que a realidade se sobrepusesse aos seus sonhos, porque não reservar um tempo entre reuniões e burocracia, para fazer o que sabia fazer tão bem…”
“CULTIVAR UM JARDIM.”
Sua alma sensível lembrou-se da época em que ainda criança, ficava no jardim, ajudando o avô e de sua emoção infantil de ver as flores surgindo como que em mágica de um dia para o outro.
Não tinha esperança que seu jardim ali plantado desse resultados pedagógicos ou organizacionais. Só precisava de um espaço e de um tempo para disfarçar a desesperança, o medo e o desespero que assolava a sua alma.
E assim, levou para a escola as ferramentas e começou a trabalhar na terra sozinha.
Não sei se por mágica, mística ou encantamento, passou pela escola, um belo dia, um senhor de idade e viu aquele ser quase angelical a trabalhar na terra. Achou que era um trabalho pesado demais para ela, decidiu se oferecer para ajudar, e fizeram juntos o trabalho mais pesado.
Foi neste mesmo período que apareceu em sua sala de diretora, o primeiro caso de maus tratos e abuso sexual. Todos da sua equipe apostavam que em sua fragilidade, a diretora encobriria o caso. Mas quando a fragilidade é acompanhada de sensibilidade e uma certa ingenuidade, surpresas acontecem: pegou a criança, colocou no seu carro e imediatamente entregou às autoridades competentes. Depois voltou à escola, deixou seu jardim de lado e procurou escrever o mais coerente dos relatórios. Pediu às autoridades sigilo pela denúncia, o que foi respeitado.
Voltou então ao seu jardim, as sementes já estavam brotando e logo se veriam as flores. Alguém sugeriu que se plantasse também temperos e plantas medicinais de uso popular. Alguém trouxe as mudas, e alguém trouxe outro caso de maus tratos. E de novo, a emergência da sensibilidade humana se colocava em ação. Criança acolhida, colocada no carro, encaminhada às autoridades competentes com rapidez. Relatório impecável, pedido de sigilo.
E assim o ano foi passando entre flores, denúncias, acolhimento, encaminhamento. Cada gesto, uma nova esperança.
E já se aproximava a primavera, as flores prontas para se abrirem, as crianças da escola fazendo aula prática entre os canteiros, aprendendo a mística das flores e o conhecimento de plantas que curam, quando um fato peculiar lhe "abre os olhos" para a sua importância naquela comunidade:
Alguém chega até ela e diz: “Nós sabemos o que a senhora faz pelas nossas crianças, e temos um caso que não é da sua escola. Esse é o endereço e o nome de uma criança que sofre abuso sexual. Nós não podemos denunciar porque sofreremos represálias. Sabemos que a senhora sabe o que fazer.”
Sentiu medo, mas sorriu feliz e aliviada - suas flores e suas denúncias tinham se tornado uma referência de vida para suas crianças, sua equipe de trabalho e sua comunidade escolar.
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