ELABORANDO O LUTO
VAI LÁ MENINA
Se o tempo passou e as luzes do Natal já não causam em
mim tanta alegria, a mística das músicas continuam tão intensa como antes.
São canções novas e velhas que "batem" em minha
alma como uma flecha de dádivas. Lembranças de uma esperança, que mesmo quando
não realizada se renova em um conjunto de emoções que se desdobra em gestos,
sorrisos, calma e uma leve sensação que em outro mundo, logo ali, podemos
dançar uma música suave, quase uma cantiga de ninar que coloque o Menino Deus
pra dormir, enquanto uma dedicada mãe e um pai zeloso cuida de tudo em meio às
adversidades da vida.
É o tempo se renovando em mim e me fazendo lembrar, não
de fatos específicos, mas de uma mística emocional que se renova sempre todo
fim de ano. Não é possível esperar o 25 de Dezembro. Preciso falar dele agora,
antecipando os dias para ampliar as emoções.
Este ano me propus a ouvir músicas de Natal durante o
período do Advento e ler a Liturgia Diária da Igreja Católica todos os dias.
Criando uma disciplina espiritual de fim de ano que nutre em mim o espírito
Natalino, sem precisar de presentes, luzes e festas. O MENINO NA MANJEDOURA É NOSSO MAIOR PRESENTE.
Meus pais nunca deixaram os filhos acreditarem no Papai
Noel. Nos ensinaram cedo a mística da espiritualidade acompanhada da força da
realidade que se manifestava em nós. Minha mãe me dizia que não queria que os
filhos e filhas dela acreditassem em ilusões. Que a verdade estava na
manjedoura. Não eram essas as palavras que ela usava, suas palavras eram bem
"duras", mas esse é o sentido que ficou pra mim. Ela também nos
proibia de falar para as outras crianças que o Papai Noel não existia, dizia
que cada um tinha as suas crenças e que não cabia a nós destruir as crenças dos
outros.
O mais fantástico é que nós seguíamos a orientação dela
nesse quesito. Não quero que pensem que éramos crianças perfeitas e obedientes,
não éramos nada disso e em muitos pontos nós a desobedecíamos, respondíamos,
brigávamos. Mas nesse ponto, na dinâmica ampla das ideias natalinas nós a
obedecíamos.
Como síntese de fim de ano tenho pensado muito nisso -
nos itens que simplesmente obedecia minha mãe e fazia exatamente do jeito que
ela orientava e nos itens que brigava, discutia, chorava e esperneava...isso
por um longo período de tempo - da infância até a vida adulta. É um
"balanço natural" de fim de ano, ou talvez de fim dos tempos - fim do
tempo em que fui filha, pois meus pais morreram - minha mãe a cinco anos e meu
pai em Julho de 2021 - É engraçado como é o tempo da mente - enquanto meu pai
estava vivo, por mais frágil que se apresentasse, sem se alimentar sozinho, de
cama, angustiadamente SEM FALAR, ele estava ali, vivendo, e eu simplesmente
ainda era a filha da Dona Nilza e do Sr. José.
Quando eles se vão fica uma sensação estranha que falta a
palavra certa para definir - a palavra que mais se aproxima é SOLIDÃO - mas na
minha experiência em julho de 2021 quando meu pai deixou esse mundo, não foi
uma SOLIDÃO TRISTE - foi uma SOLIDÃO acompanhada de um senso de REALIDADE, DE
CAMINHAR, DE INÍCIO.
É como se a vida, ocupando o lugar da minha mãe, dissesse
pra mim - AGORA É COM VOCÊ - vai lá, vai viver...
E enquanto escrevo me lembro da música de capoeira citada
em meu texto de 22/11/2021 - https://www.youtube.com/watch?v=8E4850-BPyw - e que já cantei tantas vezes:
VAI LÁ MENINA, MOSTRA O QUE O MESTRE
ENSINOU, MOSTRA QUE ARRANCARAM A ÁRVORE MAS A SEMENTE BROTOU E SE FOR BEM CULTIVADA,
VAI DAR BONS FRUTOS E BELA FLOR...
É o ciclo da vida dizendo vai lá... Vai viver.....
É a voz da minha mãe se atualizando em minha mente, como
quando no dia de Natal eu saia pra almoçar com a família do meu marido, e ela
me pedia pra ficar, mas antes que eu respondesse que voltaria a noite, ela
mesmo respondia pra mim: VAI LÁ,
VOCÊ É CASADA TEM QUE ACOMPANHAR SEU MARIDO, FICAR COM ELE.
Antes que minhas amigas feministas interpretem isso como
uma fala machista, minha mãe gostava muito do meu marido, e machismos à parte,
a fala dela manifestava o mais profundo carinho.
Quando meu pai se foi em Julho deste ano, ouvi de uma
pessoa próxima uma frase muito verdadeira, que poucos tem a coragem de dizer –
NILCÉIA, DEPOIS QUE MEU PAI MORREU EU TENHO A IMPRESSÃO QUE NUNCA MAIS ELE VAI
SAIR DE DENTRO DA MINHA CABEÇA. PENSEI, AGORA ELE SABE TUDO O QUE FAÇO E
PENSO.
Achei o máximo essa manifestação, porque é exatamente
assim que aconteceu comigo - de repente meu pai e minha mãe simplesmente
"estavam" em todos os lugares que eu estava.
Pensei que as culturas que acreditam na manifestação dos
espíritos podem ter muito a ver com esse fenômeno. Porque é uma sensação clara
e intensa de que o outro está ali. É UMA
PRESENÇA NA AUSÊNCIA. Não estou querendo dizer que vejo meu pai e minha mãe
e que converso com eles como se fossem reais. É outra coisa - outra coisa que o
meu conhecimento até o presente momento não possui palavras para descrever. É
uma emoção, uma sensação, não sei dizer. Um pensar integrado entre o passado e
o futuro que nos envolve por inteiro e me faz sentir totalmente no PRESENTE,
enquanto o passado se atualiza e o futuro se descortina como mistério - é como
receber o "bastão" em uma corrida de revezamento, naquele segundo em
que ao passar o "bastão" o atleta fala com os olhos - AGORA É COM VOCÊ, VAI LÁ....
VAI LÁ
MENINA, MOSTRA O QUE O MESTRE ENSINOU, MOSTRA QUE ARRANCARAM A ÁRVORE MAS A
SEMENTE BROTOU E SE FOR BEM CULTIVADA, VAI DAR BONS FRUTOS E BELA FLOR...
O Natal é tempo oportuno para avaliar, refletir e repensar. É tempo de esperança, importante lembrar dos pais para reviver momentos intensos de afeto, carinho, amor, aprendizagem. Como vc disse, Nilceia, teus pais plantaram a semente. O tempo de luto é propício para sentir, germinar, brotar. Basta cultivar as sementes que elas darão bons frutos. Feliz Natal!
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