quarta-feira, 3 de novembro de 2021

O MITO DA ESCOLHA DO MELHOR


Racismo e processo de seleção

Quem é o melhor?

Por que  é o melhor?

Conhecimento técnico é o único critério para definirmos quem é o melhor?

Somos melhores o tempo todo?

Na empresa que eu trabalho, por três vezes fui direcionada para trabalhar no setor de cobrança de clientes inadimplentes. É um setor difícil, porque exige muito conhecimento técnico e habilidade social. Na primeira vez eu aceitei fazer o trabalho, mas disse que só o faria se tivesse o treinamento técnico adequado. O gerente me ofereceu o treinamento  adequado  – elegeu o colega do setor para me ensinar e colocou outra colega com muito conhecimento na área da inadimplência como apoio constante pra mim. Resultado – em duas semanas eu me tornei uma pessoa super capacitada. Realizei um trabalho maravilhoso. Consegui disponibilizar um ótimo estagiário  para o setor e me tornei TOP no assunto. Recebi muitos elogios. Como dizíamos na época – A INADIMPLÊNCIA ENQUADROU.

Os colegas não entendiam como eu conseguia gostar de um setor tão desafiador? Porque além de todo conhecimento técnico é necessário conversar com o cliente inadimplente, às vezes ele é agressivo, outras chora na sua frente, e muitas vezes ficamos de “mãos atadas” sem condições de ajudá-lo. EU RESPONDIA COM UM SORRISO MEIGO E UM OLHAR SENSÍVEL , como alguém que fez da resiliência cristã o norte da própria vida – É QUE DE SOFRIMENTO EU ENTENDO

Algum tempo depois, outro gerente descobriu que eu tinha trabalhado no setor de inadimplência e me perguntou se eu estava disposta a ajudar novamente. Informei que teria de estudar alguns dias sobre o tema, e  sim poderia ajudar. Desta vez eu já possuía o conhecimento técnico adequado, mas o desafio era maior porque tinha de conciliar a coordenação do meu setor com o trabalho de combate da inadimplência. Mas de novo me saí muito bem. Diria que até melhor que da primeira vez. Recebi muitos elogios. Esse gerente era evangélico pentecostal, e tinha o hábito de dar ênfase verbal aos bons acontecimentos. Enfim, ele falou de mim, do meu trabalho para o setor inteiro e para o prédio onde trabalhávamos também. Fiquei conhecida como a “garota do combate à inadimplência". No final da campanha voltei para o meu setor e iniciou-se o enfrentamento da doença da minha mãe que depois a levou à morte.

O tempo passou. Ah! O tempo sempre passa... minha mãe faleceu e vivi sem dúvida alguma a maior dor da minha vida.... 15 dias depois, minha sogra também faleceu. Fiquei o tempo de luto em casa e voltei pro trabalho, para o meu setor.

As coisas acontecem, as coisas mudam....a vida é dinâmica....de novo ocorre a troca de gerente e de novo chegou o período de combater a inadimplência e de novo alguém falou pro gerente que eu era muito boa nisso, e ele veio falar comigo, me pedindo “ajuda”.

Isso aconteceu exatamente no período amplo de luto pela morte da minha mãe e sogra. Eu estava órfã e isso não é fácil de se viver, é quase impossível de elaborar. Fui solícita ao pedido do gerente, mas algo me dizia que aquilo não daria certo. Não estava em condições de trabalhar em um setor que exigia de mim um modelo de pensamento objetivo, metódico, preciso e muito menos estava preparada para ouvir a dor do outro, que não estava conseguindo arcar com as suas obrigações financeiras.

Eu confesso que tentei. Tentei com bastante força e determinação interior. De novo eu sentei e fui ler as instruções, tentar captar o que mudou nas regras, mas não consegui sair disso, não consegui sair da tentativa. Não conseguia nem mesmo entender o que estava escrito, sentia uma profunda vontade de chorar só de tentar.

Graças ao bom Deus, o colega que estava trabalhando no setor deve ter percebido a minha angústia e provavelmente falou com o gerente e eles “lidaram” com a minha angústia dentro do modelo masculino, que é meio estranho ao jeito feminino de ser – não me chamaram pra conversar e perguntar o que estava acontecendo, mas pararam de pedir ajuda  na inadimplência e no SILÊNCIO da comunicação afetiva entendemos que aquilo era o melhor para todos e todas.

Nunca tive a oportunidade de agradecer ao colega e ao gerente por isso. Ao gerente porque ele foi transferido algum tempo depois que eu consegui elaborar a angústia  e não tive a oportunidade de retomar o assunto. Só consegui compreender o efeito EDIFICANTE daquele SILÊNCIO em meu espírito algum tempo depois de sua transferência. As "coisas do espírito humano" possui um tempo muito diferente do tempo do relógio – CHRONOS e KAIRÓS  não caminham juntos no mesmo espaço simbólico.

Ao colega, não foi possível agradecer porque ele faleceu algum tempo depois do ocorrido. E a dor de perder o amigo se sobrepôs à dor de perder a minha mãe. Existem períodos na nossa vida que tudo que podemos fazer é CONTABILIZAR NOSSAS DORES NO SILÊNCIO DAS RELAÇÕES EDIFICANTES.

O que quero deixar claro aqui é que na terceira vez eu não seria escolhida para uma promoção, eu não estava apta para a função, mesmo tendo um histórico de capacitação e demonstração de competências. Se os eventos incluíssem um processo de promoção, na terceira vez eu não seria escolhida. O que estou tentando explicar é que o processo de escolha NUNCA É OBJETIVO – seja da parte de quem escolhe, seja da parte de quem é escolhido – as variáveis são sempre muitas.

Na história em que vivi, a minha situação era relativamente cômoda, eu não estava nem mesmo lutando por uma promoção – eu estava colaborando com outro setor e recebendo em troca apenas o reconhecimento social. Eu não teria alteração no meu salário, a minha vida não dependia disso, e quando não consegui realizar a tarefa recebi o acolhimento SILENCIOSO da equipe.

Mas em um processo de seleção, na grande maioria das vezes as pessoas precisam do trabalho para sobreviver. É UMA QUESTÃO DE VIDA OU MORTE.

E como sou branca, NÃO ENFRENTEI COMENTÁRIOS VELADOS OU DIRETOS, insinuando ou afirmando que eu não consegui porque negra é assim mesmo, que não tem disciplina, não consegue administrar bem a dor, que não consegue manter o foco, a fé, e etc...

 

 

 

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