Racismo e processo de seleção
Quem é o melhor?
Por que é o melhor?
Conhecimento técnico é o único critério para definirmos quem é o melhor?
Somos melhores o tempo todo?
Na empresa que eu trabalho, por três vezes fui direcionada para
trabalhar no setor de cobrança de clientes inadimplentes. É um setor difícil,
porque exige muito conhecimento técnico e habilidade social. Na primeira vez eu
aceitei fazer o trabalho, mas disse que só o faria se tivesse o treinamento técnico
adequado. O gerente me ofereceu o treinamento
adequado – elegeu o colega do
setor para me ensinar e colocou outra colega com muito conhecimento na área da
inadimplência como apoio constante pra mim. Resultado – em duas semanas eu me
tornei uma pessoa super capacitada. Realizei um trabalho maravilhoso. Consegui
disponibilizar um ótimo estagiário para
o setor e me tornei TOP no assunto. Recebi muitos elogios. Como dizíamos na
época – A INADIMPLÊNCIA ENQUADROU.
Os colegas não entendiam como eu conseguia gostar de um setor tão
desafiador? Porque além de todo conhecimento técnico é necessário conversar com
o cliente inadimplente, às vezes ele é agressivo, outras chora na sua frente, e
muitas vezes ficamos de “mãos atadas” sem condições de ajudá-lo. EU RESPONDIA
COM UM SORRISO MEIGO E UM OLHAR SENSÍVEL , como alguém que fez da
resiliência cristã o norte da própria vida – É QUE DE SOFRIMENTO EU ENTENDO
Algum tempo depois, outro gerente descobriu que eu tinha trabalhado no
setor de inadimplência e me perguntou se eu estava disposta a ajudar novamente.
Informei que teria de estudar alguns dias sobre o tema, e sim poderia ajudar. Desta vez eu já possuía o
conhecimento técnico adequado, mas o desafio era maior porque tinha de
conciliar a coordenação do meu setor com o trabalho de combate da
inadimplência. Mas de novo me saí muito bem. Diria que até melhor que da
primeira vez. Recebi muitos elogios. Esse gerente era evangélico pentecostal, e
tinha o hábito de dar ênfase verbal aos bons acontecimentos. Enfim, ele falou
de mim, do meu trabalho para o setor inteiro e para o prédio onde trabalhávamos
também. Fiquei conhecida como a “garota do combate à inadimplência". No
final da campanha voltei para o meu setor e iniciou-se o enfrentamento da
doença da minha mãe que depois a levou à morte.
O tempo passou. Ah! O tempo sempre passa... minha mãe faleceu e vivi sem
dúvida alguma a maior dor da minha vida.... 15 dias depois, minha sogra também
faleceu. Fiquei o tempo de luto em casa e voltei pro trabalho, para o meu
setor.
As coisas acontecem, as coisas mudam....a vida é dinâmica....de novo
ocorre a troca de gerente e de novo chegou o período de combater a
inadimplência e de novo alguém falou pro gerente que eu era muito boa nisso, e
ele veio falar comigo, me pedindo “ajuda”.
Isso aconteceu exatamente no período amplo de luto pela morte da minha
mãe e sogra. Eu estava órfã e isso não é fácil de se viver, é quase impossível
de elaborar. Fui solícita ao pedido do gerente, mas algo me dizia que aquilo
não daria certo. Não estava em condições de trabalhar em um setor que exigia de
mim um modelo de pensamento objetivo, metódico, preciso e muito menos estava
preparada para ouvir a dor do outro, que não estava conseguindo arcar com as
suas obrigações financeiras.
Eu confesso que tentei. Tentei com bastante força e determinação
interior. De novo eu sentei e fui ler as instruções, tentar captar o que mudou
nas regras, mas não consegui sair disso, não consegui sair da tentativa. Não
conseguia nem mesmo entender o que estava escrito, sentia uma profunda vontade
de chorar só de tentar.
Graças ao bom Deus, o colega que estava trabalhando no setor deve ter
percebido a minha angústia e provavelmente falou com o gerente e eles “lidaram”
com a minha angústia dentro do modelo masculino, que é meio estranho ao jeito
feminino de ser – não me chamaram pra conversar e perguntar o que estava
acontecendo, mas pararam de pedir ajuda
na inadimplência e no SILÊNCIO da comunicação afetiva entendemos que
aquilo era o melhor para todos e todas.
Nunca tive a oportunidade de agradecer ao colega e ao gerente por isso.
Ao gerente porque ele foi transferido algum tempo depois que eu consegui
elaborar a angústia e não tive a
oportunidade de retomar o assunto. Só consegui compreender o efeito EDIFICANTE
daquele SILÊNCIO em meu espírito algum tempo depois de sua transferência. As
"coisas do espírito humano" possui um tempo muito diferente do tempo
do relógio – CHRONOS e KAIRÓS não
caminham juntos no mesmo espaço simbólico.
Ao colega, não foi possível agradecer porque ele faleceu algum tempo
depois do ocorrido. E a dor de perder o amigo se sobrepôs à dor de perder a
minha mãe. Existem períodos na nossa vida que tudo que podemos fazer é
CONTABILIZAR NOSSAS DORES NO SILÊNCIO DAS RELAÇÕES EDIFICANTES.
O que quero deixar claro aqui é que na terceira vez eu não seria
escolhida para uma promoção, eu não estava apta para a função, mesmo tendo um
histórico de capacitação e demonstração de competências. Se os eventos
incluíssem um processo de promoção, na terceira vez eu não seria escolhida. O
que estou tentando explicar é que o processo de escolha NUNCA É OBJETIVO – seja
da parte de quem escolhe, seja da parte de quem é escolhido – as variáveis são
sempre muitas.
Na história em que vivi, a minha situação era relativamente cômoda, eu
não estava nem mesmo lutando por uma promoção – eu estava colaborando com outro
setor e recebendo em troca apenas o reconhecimento social. Eu não teria
alteração no meu salário, a minha vida não dependia disso, e quando não
consegui realizar a tarefa recebi o acolhimento SILENCIOSO da equipe.
Mas em um processo de seleção, na grande maioria das vezes as pessoas
precisam do trabalho para sobreviver. É UMA QUESTÃO DE VIDA OU MORTE.
E como sou branca, NÃO ENFRENTEI COMENTÁRIOS VELADOS OU DIRETOS, insinuando
ou afirmando que eu não consegui porque negra é assim mesmo, que não tem
disciplina, não consegue administrar bem a dor, que não consegue manter o foco,
a fé, e etc...
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