segunda-feira, 8 de novembro de 2021

TIRE PRIMEIRO A TRAVA DE TEU OLHO

Evangelho de São Mateus (7,5)

 

Só não vê quem não quer.

De que lado da rua você está?

Qual perspectiva sua visão alcança!

 

Uma frase que tenho recebido no zap é: SÓ NÃO VÊ QUEM NÃO QUER. Normalmente à recebo de amigos da extrema direita. Qual foi minha surpresa, quando hoje, ao receber de uma amiga de esquerda um texto muito bem elaborado que faz uma profunda análise da história do Brasil a partir de Getúlio Vargas até os dias atuais e VER que lá estava a frase SÓ NÃO VER QUEM NÃO QUER.

Essa expressão causa em mim uma irritação peculiar. Me parece uma fake news ideologizada - não sei se existe essa palavra ou conceito, mas neste caos que estamos vivendo, preciso inventar alguns termos para tentar ir além.

Descobrimos que estamos ficando velha quando começamos as frases com as palavras: Sou de uma época....

Pois bem, vamos assumir os anos vividos e tentar transformá-los em reflexões produtivas - Sou de uma época em que se fazia debate de ideias às 18:00 na TV. Em um desses programas ouvi uma história maravilhosa sobre a questão da visão de mundo, interpretações e posicionamentos ideológicos, que nunca mais esqueci.

Um dos convidados contou a seguinte história: Na Europa, acho que Inglaterra, estava passando o seguinte vídeo na TV, talvez fosse um comercial, não sei... Em uma rua vazia vinha caminhando na calçada um casal de velhinhos, caminhando calmamente, com todas as debilidades que a velhice oferece. Do outro lado da rua, na calçada no sentido oposto, vinha caminhando um rapaz, jovem, andar de "malandro", mal vestido.  Andava relativamente rápido com as habilidades que a juventude oferece. Em um determinado momento esse rapaz olha para os velhinhos no outro lado da rua e sai correndo em diagonal, atravessando a rua em alta velocidade. Todos que estão assistindo a cena desta perspectiva tem certeza absoluta que o jovem irá roubar os dois velhinhos. Não tem como ser de outra forma. Parece óbvio e certeiro que um jovem com andar "malevolente", roupas maltrapilhas, ao correr em direção a dois velhos irá sem dúvida alguma roubar.

Acredito que os adeptos do critério “só não vê quem não quer”, já decidiram acreditar que o jovem moço, maltrapilho irá roubar e machucar os velhinhos, será agressivo, muito provavelmente os faça cair….

Mas....

A câmara muda de perspectiva e mostra a realidade a partir da visão do jovem. Estando do outro lado da rua, ele vê os idosos andando calmamente, mas também consegue ver todo o contexto que se passava em torno da caminhada do casal. Foi dessa perspectiva que ele viu que um dos prédios do outro lado da rua estava em construção, e que havia um objeto fora dos padrões de segurança, prestes a cair. Calculou rápido, viu que se o objeto caísse teria grande chance de cair em cima do casal de velhinhos. Então não teve dúvida, precipitou-se correndo pela rua para alcançar o casal de idosos antes que a peça caísse e assim os salva.

Me lembro também de uma outra história, essa vivida. Eu trabalhei em uma escola estadual, no período vespertino e noturno. Cada sala de aula possui sua chave. Todo professor que chega na sala deveria pegar essa chave e guardá-la consigo. Cabia ao professor decidir se daria aula com a porta trancada, encostada ou aberta. Mas às vezes os professores cometiam uma pequena falha, muito mais por confiança nos alunos do que por irresponsabilidade. Eles deixavam a chave na porta. O diretor da escola sempre alertava sobre isso e dizia - vai dar problema. Quem trabalhou com adolescentes sabe que essa história não tem como acabar bem. Seja pela lei da atração da fala do diretor, seja porque adolescente apronta mesmo, um belo dia, após o intervalo da turma da noite, alguns adolescentes pegaram a chave e trancou a porta. Detalhe, 50% da turma estava dentro da sala e a outra metade pra fora. Soma-se a isso que a escola é da área rural, portanto impossível achar um chaveiro as nove horas da noite, a equipe gestora tinha um grande problema nas mãos. Por um acaso neste horário, estava fazendo a ronda escolar dois policiais. Enquanto todos os professores e equipe gestora, desesperados, conversando com os adolescentes, ameaçando e contando a história para os policiais, um pediu licença e perguntou calmamente se podia dar uma volta.

É preciso lembrar que estamos falando de escola pública, adolescentes e policiais. Na grande maioria das vezes essa mistura não dá certo. Tinha-se um aluno suspeito de ter feito a arte. O que se imagina da polícia brasileira nestes casos é que desse uma "prensa" no adolescente e o fizesse contar onde tinha escondido a chave

Mas o policial que se afastou calmamente, andou até a porta da sala, olhou pra dentro da mesma, olhou para os lados, pressionou a maçaneta pra confirmar se a porta estava realmente trancada, levou a mão por cima do batente da porta, onde localizou a chave. A pegou calmamente e entregou pra pessoa responsável pela escola.

Com um pouco de imaginação, posso ver um leve sorriso no rosto do policial, afinal de contas ele também foi adolescente.

Pasmem diante do óbvio - NENHUM DOS EDUCADORES PRESENTES PENSOU EM PROCURAR A CHAVE E NEM IMAGINAMOS QUE ELA PODERIA ESTAR EM UM LUGAR TÃO ÓBVIO.

Hoje pensando no assunto, acho que talvez o policial, através de sua prática profissional de observar tenha visto a movimentação dos alunos, alguns olhares, algumas risadas. Ou talvez tenha sido apenas intuição motivada pela prática e experiência.

Quando eu era Conselheira Tutelar uma assistente social contou-me a seguinte história:
Estava um grupo de amigos de formação diferente reunidos em uma praça - assistente social, psicólogo, médico, engenheiro, administrador, advogado, técnico em segurança. Quando de repente na rua ocorre um acidente de carro!

Quais são os primeiros pensamentos desses profissionais?
- médico - tem vítima grave?
- assistente social - precisa avisar a família.
- administrador- tem seguro?
- advogado - o que aconteceu? Quem é o culpado?
- psicólogo - terão condições emocionais para lidar com a situação?
- engenheiro - tem risco de incêndio?
- técnico em segurança - preciso isolar a área.

Você pode colocar outras profissões na lista se quiser. Pode colocar a sua profissão e imaginar qual é o seu primeiro pensamento em situações extremas - No meu caso especificamente EU CONSIGO permanecer calma, não atrapalhar e permitir que os outros trabalhem adequadamente para a solução do desafio apresentado.

Mas a meu favor tenho a dizer que sou muito abençoada, pois sempre que acontece algum acidente e estou perto, TEM ALGUÉM MUITO CAPACITADO POR PERTO TAMBÉM que encaminha e resolve a situação.

Mas recuando um pouco mais em minhas memórias até a infância, lembro-me da minha mãe TAMPANDO MEU OLHO com as mãos quando íamos à cidade, para que eu não visse  os doces  das vitrines das padarias, uma vez que ela não podia pagar. Nunca conversei sobre isso com minha mãe. Tirando o fato de que hoje não posso ver um doce que eu quero comprar e comer, o que dificulta muito uma dieta saudável e que preciso da ajuda do meu marido para controlar o meu Vale Refeição e Alimentação, essa proibição de ver não me causou grandes traumas. O que acho engraçado é que minha mãe apenas se preocupava em não nos deixar ver as coisas de comer que não podíamos comprar. As bonecas, as roupas, as bicicletas, os móveis, podíamos VER a vontade que a resposta era NÃO e acabou. Simples assim.

Mais recentemente, perto de onde eu trabalhava tinha um morador de rua e às vezes eu tomava café com ele na doceria da esquina. Em uma dessas vezes, enquanto eu pagava a conta, ele andava de um lado pro outro dentro da doceria, quando de repente entram dois policiais, um com arma na mão. Me lembro apenas de olhar rapidamente para o policial e afirmar categoricamente - ELE ESTÁ COMIGO, ELE ESTÁ COMIGO, ELE É MEU AMIGO. O Policial olhou para a caixa do estabelecimento e perguntou: está tudo bem? Ela respondeu que sim. O policial se foi. Em um primeiro momento eu pensei no policial como alguém que estava sendo preconceituoso, mas na perspectiva dele, tudo que VIU foi um jovem mal vestido agitado, andando de um lado pro outro dentro de uma doceria de manhã.

Só vemos aquilo que nossa visão permite. E nossa visão está circunscrita ao nosso lugar geográfico, econômico, social, ideológico. NOSSA PERCEPÇÃO É SEMPRE LIMITADA – “O MUNDO SEMPRE GIRA EM TORNO DE NÓS MESMOS”. Essa é nossa dádiva e maldição.

Podemos procurar retirar a trave dos nossos olhos, como nos ensina o Evangelho de Jesus, mas o problema é que na maioria das vezes nem sabemos que existe a trave. Deve ser por isso que Jesus frisou tanto a importância do convívio social, porque precisamos dos outros para nos levar por caminhos simbólicos que nunca fomos e assim olharmos em outra perspectiva.

Na época da faculdade um professor de psicologia disse - precisamos dos outros, precisamos dos outros porque não nos vemos - e destacou é isso mesmo - nós não nos vemos - não vemos nosso rosto nem nossas costas. Isso parece óbvio. Mas acho que destaca o fato que precisamos dos outros, às vezes até mesmo para que este nos mostre a trave que existe no nosso olho.

 

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