Evangelho de São
Mateus (7,5)
Só não vê quem não quer.
De que lado da
rua você está?
Qual perspectiva
sua visão alcança!
Uma frase que tenho recebido no zap é: SÓ NÃO VÊ QUEM NÃO QUER.
Normalmente à recebo de amigos da extrema direita. Qual foi minha surpresa,
quando hoje, ao receber de uma amiga de esquerda um texto muito bem elaborado
que faz uma profunda análise da história do Brasil a partir de Getúlio Vargas
até os dias atuais e VER que lá estava a frase SÓ NÃO VER QUEM NÃO QUER.
Essa expressão causa em mim uma irritação peculiar. Me parece uma fake
news ideologizada - não sei se existe essa palavra ou conceito, mas neste
caos que estamos vivendo, preciso inventar alguns termos para tentar ir além.
Descobrimos que estamos ficando velha quando começamos as frases com as
palavras: Sou de uma época....
Pois bem, vamos assumir os anos vividos e tentar transformá-los em
reflexões produtivas - Sou de uma época em que se fazia debate de ideias às
18:00 na TV. Em um desses programas ouvi uma história maravilhosa sobre a
questão da visão de mundo, interpretações e posicionamentos ideológicos, que
nunca mais esqueci.
Um dos convidados contou a seguinte história: Na Europa, acho que
Inglaterra, estava passando o seguinte vídeo na TV, talvez fosse um comercial,
não sei... Em uma rua vazia vinha caminhando na calçada um casal de velhinhos,
caminhando calmamente, com todas as debilidades que a velhice oferece. Do outro
lado da rua, na calçada no sentido oposto, vinha caminhando um rapaz, jovem,
andar de "malandro", mal vestido.
Andava relativamente rápido com as habilidades que a juventude oferece.
Em um determinado momento esse rapaz olha para os velhinhos no outro
lado da rua e sai correndo em diagonal, atravessando a rua em alta velocidade.
Todos que estão assistindo a cena desta perspectiva tem certeza absoluta
que o jovem irá roubar os dois velhinhos. Não tem como ser de outra forma.
Parece óbvio e certeiro que um jovem com andar "malevolente", roupas
maltrapilhas, ao correr em direção a dois velhos irá sem dúvida alguma roubar.
Acredito que os adeptos do critério “só não vê quem não quer”, já
decidiram acreditar que o jovem moço, maltrapilho irá roubar e machucar os
velhinhos, será agressivo, muito provavelmente os faça cair….
Mas....
A câmara muda de perspectiva e mostra a realidade a partir da visão do jovem. Estando do outro
lado da rua, ele vê os idosos andando calmamente, mas também consegue ver todo
o contexto que se passava em torno da caminhada do casal. Foi dessa perspectiva
que ele viu que um dos prédios do outro lado da rua estava em construção, e que
havia um objeto fora dos padrões de segurança, prestes a cair. Calculou rápido,
viu que se o objeto caísse teria grande chance de cair em cima do casal de
velhinhos. Então não teve dúvida, precipitou-se correndo pela rua para alcançar
o casal de idosos antes que a peça caísse e assim os salva.
Me lembro também de uma outra história, essa vivida. Eu trabalhei em uma
escola estadual, no período vespertino e noturno. Cada sala de aula possui sua
chave. Todo professor que chega na sala deveria pegar essa chave e guardá-la
consigo. Cabia ao professor decidir se daria aula com a porta trancada,
encostada ou aberta. Mas às vezes os professores cometiam uma pequena falha,
muito mais por confiança nos alunos do que por irresponsabilidade. Eles
deixavam a chave na porta. O diretor da escola sempre alertava sobre isso e
dizia - vai dar problema. Quem trabalhou com adolescentes sabe que essa
história não tem como acabar bem. Seja pela lei da atração da fala do diretor,
seja porque adolescente apronta mesmo, um belo dia, após o intervalo da turma
da noite, alguns adolescentes pegaram a chave e trancou a porta. Detalhe,
50% da turma estava dentro da sala e a outra metade pra fora. Soma-se a isso
que a escola é da área rural, portanto impossível achar um chaveiro as nove
horas da noite, a equipe gestora tinha um grande problema nas mãos. Por um
acaso neste horário, estava fazendo a ronda escolar dois policiais. Enquanto
todos os professores e equipe gestora, desesperados, conversando com os adolescentes,
ameaçando e contando a história para os policiais, um pediu licença e perguntou
calmamente se podia dar uma volta.
É preciso lembrar que estamos falando de escola pública, adolescentes e
policiais. Na grande maioria das vezes essa mistura não dá certo. Tinha-se um aluno
suspeito de ter feito a arte. O que se imagina da polícia brasileira nestes
casos é que desse uma "prensa" no adolescente e o fizesse contar onde
tinha escondido a chave
Mas o policial que se afastou calmamente, andou até a porta da sala,
olhou pra dentro da mesma, olhou para os lados, pressionou a maçaneta pra confirmar
se a porta estava realmente trancada, levou a mão por cima do batente da porta,
onde localizou a chave. A pegou calmamente e entregou pra pessoa
responsável pela escola.
Com um pouco de imaginação, posso ver um leve sorriso no rosto do
policial, afinal de contas ele também foi adolescente.
Pasmem diante do óbvio - NENHUM DOS EDUCADORES PRESENTES PENSOU EM
PROCURAR A CHAVE E NEM IMAGINAMOS QUE ELA PODERIA ESTAR EM UM LUGAR TÃO ÓBVIO.
Hoje pensando no assunto, acho que talvez o policial, através de sua
prática profissional de observar tenha visto a movimentação dos alunos, alguns
olhares, algumas risadas. Ou talvez tenha sido apenas intuição motivada pela
prática e experiência.
Quando eu era Conselheira Tutelar uma assistente social contou-me a seguinte
história:
Estava um grupo de amigos de formação diferente reunidos em uma praça -
assistente social, psicólogo, médico, engenheiro, administrador, advogado,
técnico em segurança. Quando de repente na rua ocorre um acidente de carro!
Quais são os primeiros pensamentos desses profissionais?
- médico - tem vítima grave?
- assistente social - precisa avisar a família.
- administrador- tem seguro?
- advogado - o que aconteceu? Quem é o culpado?
- psicólogo - terão condições emocionais para lidar com a situação?
- engenheiro - tem risco de incêndio?
- técnico em segurança - preciso isolar a área.
Você pode colocar outras profissões na lista se quiser. Pode colocar a
sua profissão e imaginar qual é o seu primeiro pensamento em situações extremas
- No meu caso especificamente EU CONSIGO permanecer calma, não
atrapalhar e permitir que os outros trabalhem adequadamente para a solução do
desafio apresentado.
Mas a meu favor tenho a dizer que sou muito abençoada, pois sempre que
acontece algum acidente e estou perto, TEM ALGUÉM MUITO CAPACITADO POR PERTO
TAMBÉM que encaminha e resolve a situação.
Mas recuando um pouco mais em minhas memórias até a infância, lembro-me
da minha mãe TAMPANDO MEU OLHO com as mãos quando íamos à cidade, para
que eu não visse os doces das vitrines das padarias, uma vez que ela
não podia pagar. Nunca conversei sobre isso com minha mãe. Tirando o fato de
que hoje não posso ver um doce que eu quero comprar e comer, o que dificulta
muito uma dieta saudável e que preciso da ajuda do meu marido para controlar o
meu Vale Refeição e Alimentação, essa proibição de ver não me causou
grandes traumas. O que acho engraçado é que minha mãe apenas se preocupava em
não nos deixar ver as coisas de comer que não podíamos comprar. As bonecas, as
roupas, as bicicletas, os móveis, podíamos VER a vontade que a resposta
era NÃO e acabou. Simples assim.
Mais recentemente, perto de onde eu trabalhava tinha um morador de rua e
às vezes eu tomava café com ele na doceria da esquina. Em uma dessas vezes,
enquanto eu pagava a conta, ele andava de um lado pro outro dentro da doceria,
quando de repente entram dois policiais, um com arma na mão. Me lembro apenas
de olhar rapidamente para o policial e afirmar categoricamente - ELE ESTÁ
COMIGO, ELE ESTÁ COMIGO, ELE É MEU AMIGO. O Policial olhou para a caixa do
estabelecimento e perguntou: está tudo bem? Ela respondeu que sim. O policial
se foi. Em um primeiro momento eu pensei no policial como alguém que estava
sendo preconceituoso, mas na perspectiva dele, tudo que VIU foi um jovem
mal vestido agitado, andando de um lado pro outro dentro de uma doceria de
manhã.
Só vemos aquilo que nossa visão permite. E nossa visão está circunscrita
ao nosso lugar geográfico, econômico, social, ideológico. NOSSA PERCEPÇÃO É
SEMPRE LIMITADA – “O MUNDO SEMPRE GIRA EM TORNO DE NÓS MESMOS”. Essa é nossa
dádiva e maldição.
Podemos procurar retirar a trave dos nossos olhos, como nos ensina o
Evangelho de Jesus, mas o problema é que na maioria das vezes nem sabemos que
existe a trave. Deve ser por isso que Jesus frisou tanto a importância do
convívio social, porque precisamos dos outros para nos levar por caminhos
simbólicos que nunca fomos e assim olharmos em outra perspectiva.
Na época da faculdade um professor de psicologia disse - precisamos dos
outros, precisamos dos outros porque não nos vemos - e destacou é isso
mesmo - nós não nos vemos - não vemos nosso rosto nem nossas costas. Isso
parece óbvio. Mas acho que destaca o fato que precisamos dos outros, às vezes
até mesmo para que este nos mostre a trave que existe no nosso olho.
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