terça-feira, 3 de agosto de 2021

Os legados do Meu Pai José Eulampio Martins

foi levando boi, um dia ele se foi no rastro da boiada
Música Boiada - Almir Sater
https://www.youtube.com/watch?v=PZ5L1MMTfSo

DESAFIOS QUE MEU PAI TRILHOU

     Quando vi meu pai envelhecer, entendi que a geração dele, ao se despedir dessa vida possui uma dor a mais. Porque muito antes dos olhos dele se fechar, viu diante de si, o mundo ao qual pertencia deixar de existir. Já não existe mais os cavalos, as rezas, as festas, os bailes, o longo cavalgar a noite para voltar pra casa, as conversas nas encruzilhadas, os sinos da igreja, a Ave Maria no alto-falante da matriz. 
O cavalgar a noite poderia ser debaixo de um céu estrelado e uma bela lua  ou em uma noite escura e chuvosa. Que diferença fazia? Tudo era a vida. 
Teve de dizer adeus ao seu mundo, ao sentido da sua existência, ainda em vida e as vezes penso que isso o matou um pouco a cada dia. Ou talvez o tenha fortalecido mais ainda. Como saber o que se passava na cabeça e no coração de uma geração que tudo a vida ofereceu foi lutas e labutas? E "cavou" como ninguém  alegrias nos intempéries do cotidiano.
O que sei é que nunca se rendeu. Lutou e buscou a sua dignidade, o seu sonho, a sua esperança até o final. 
Se dizer esse adeus, pra um tempo, uma cultura que não existe mais, dói em mim, que embrenhei na cultura urbana, estudei, trabalhei, me adaptei ao uso do computador. Imaginem nele! 
Meu pai não se rendeu as ilusões do progresso, não gostava de televisão. Não gostava de filmes ou novela - gostava mesmo era de contar a sua própria história. Acostumado a isso fez de suas histórias o instrumento de educação dos filhos e filhas. 
Não cresci ouvindo contos de fadas. Cresci ouvindo as histórias do meu pai. Histórias de batalhas e lutas incessantes pela sobrevivência.  Acreditava que as crianças podiam ouvir suas histórias sem qualquer dano, e estava certo. Aprendi a ser forte, a ser lutadora com o meu pai, com as histórias que meu pai contava.
Um pouco "louco" em suas orientações, mandou seus filhos e filhas muito novos pra escola na cidade. Íamos de charrete - veículo de tração animal que se diferencia da carroça por ser de uso quase que exclusivo para passeio e viagens curtas - https://www.dicionarioinformal.com.br/charrete/.
 Me lembro do meu pai orientando meu irmão e imã mais velha que a força de um animal é muito grande, e que se por um acaso alguém nos parasse no caminho e segurasse as rédeas do animal, não deveríamos  resistir a isso, muito pelo contrário, deveríamos também ajudar a prender as rédeas do animal e no momento oportuno lhe bater fortemente com o chicote, pois isso desencadearia um "arranque" por parte do animal e teríamos a chance de fugir. 
Explicando: arranque é o equivalente a impulso. O animal se sentiria tão agredido com a situação que usaria toda a sua força para sair dela. 
Quando falam que os tempos antigos que eram bons, sempre me lembro dessa orientação do meu pai. O tempo antigo não era bom, o que era incrível era a coragem e a capacidade dos pais e mães de orientarem os filhos para enfrentar os perigos da época. 
Outra orientação absurda que meu pai nos dava em relação a escola e convívio com outras crianças era: Nunca bata, jamais, nunca...primeiro. E a orientação continuava: mas se alguém te bater revide com toda a sua força. 
Nunca nos orientou a baixar a cabeça para as pessoas. Dizia sempre, não importa com quem vocês estiverem conversando, se acharem que estão certos, defendam o seu ponto de vista. Depois quando eu chegar a gente resolve. Eu sempre me preocupei em não entrar em alguma "demanda" que pudesse estar "errada". Seria muito complicado enfrentar meu pai depois. rss
Homem a frente do seu tempo, colocou filhas e filhos na escola em uma época, no interior de Minas Gerais em que a prioridade era apenas dos homens. Nunca proibiu suas filhas de estudarem, trabalharem ou lutarem pelo que acreditava. No quesito trabalho e estudos nunca fez distinção entre filhos e filhas. 
Não era de elogios. Tinha um gosto intenso pela crítica. Cresci acostumada com isso. Mas me lembro de uma vez, eu já casada, quando surgiu uma oportunidade de emprego em outra cidade e eu fui, enquanto meu marido ficou na cidade em que morávamos. Muitas pessoas me criticaram e havia aqueles "cochichos" de fim de casamento. "Peguei" meu pai falando pra alguém sobre a situação - o que mais orgulho dos meus filhos é que com eles não tem "tempo ruim". Veja a Nilcéia, surgiu uma oportunidade pra trabalhar em outra cidade e foi, não tem nada que a impede. Criei meus filhos para terem expediente. Confesso que saboreei esse momento por muitos dias seguidos. 
Pra quem não sabe, ter expediente é ter iniciativa, capacidade de tomar atitudes para enfrentar os desafios que a vida oferece. 
Fez o maior de todos os sacrifícios - abandonou o seu mundo no sítio para vir morar na cidade com o objetivo de poder voltar. Fez isso porque queria um futuro melhor para os filhos. Apesar de não verbalizar isso, sabíamos que esse era o grande motivador.
Viveu 41 anos em um mundo em que não gostava, em que nada lhe trazia satisfação, para garantir que seus filhos tivessem uma vida melhor. Se isso não é resiliência eu não sei o que é. 
Encontrou na cidade oportunidade de ter alguns cavalos, isso era o seu alento. 
Não ficou satisfeito com o resultado de tudo, queria mais. Acho que posso definir o meu pai como ambicioso. Queria muito e lutou muito pelo sonho de ter um sítio. A vida não lhe deu isso. Morreu triste por não consegui realizar tal sonho. 
Mas acho que sua maior vitória foi sempre ter sonhado. Não "abriu mão". Não desistiu de sonhar.
Homenagem a José Eulampio Martins - meu pai.
13/08/1933 a 26/07/2021

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