QUANDO A RELAÇÃO TRABALHISTA REQUER MILAGRES
Parte II
Apenas no século 21, já adulta, depois de muitas palestras e diálogos com amigas feministas, me dei conta do quanto essa demanda (conflito) para receber a parte que lhe cabia do seu trabalho, afetou a minha mãe.
É que o processo de desenvolvimento da consciência é algo lento. As histórias vão sendo contadas de acordo com os contextos ideológicos em que vivemos. Vamos recebendo-as e resignificando-as na medida que temos contato com novos conteúdos. Os novos conteúdos permitem a expansão da consciência e consequentemente a construção de uma nova percepção dos fatos.
Como meu pai sempre contou a versão dele da história, e minha mãe não tinha a habilidade da narrativa, aprendi desde pequena que se tratava de um conflito masculino. E sempre me encantei com a DECISÃO que meu pai demonstrou durante todo o conflito (demanda).
Mas no século 21, entendi que aquele NÃO foi um ato heroico apenas do meu pai. E que minha mãe participou de todo o evento, seja como vítima, seja como protagonista ou coadjuvante. O fato é que ela estava lá. Além disso, o não receber a parte da COLHEITA significava passar pelo menos um ano de penúria, dependendo da ajuda de familiares para se alimentar.
Isto é algo que a classe média brasileira da extrema direita nem sonha como é – o momento quando a fome ainda não chegou, mas sabemos que ela está vindo e entrará pela nossa porta a qualquer momento.
Então perguntei pra minha mãe como foi viver a situação de intenso conflito para que a família recebesse o fruto do trabalho (salário). Ela me respondeu em poucas palavras:
“FOI UM HORROR, ELE ANDAVA DIA E NOITE EM BUSCA DE APOIO. EU, EM CASA, SOZINHA, COM DUAS CRIANÇAS, REZAVA DIA E NOITE.”
Só então me dei conta que minha mãe tinha sido a guardiã da colheita com apenas duas crianças e suas orações.
Percebi também que apesar do horror da história na perspectiva da classe trabalhadora, comparada com situações recentes do país, minha família viveu uma situação privilegiada, pois era uma região onde mulheres e crianças na maioria das vezes eram “respeitadas” durante os conflitos profissionais. A casa NÃO foi invadida, as mulheres NÃO FORAM estupradas e as crianças NÃO FORAM assassinadas. Talvez devido ao catolicismo arcaico que seguiam - a devoção em Maria, mãe de Jesus, é como se houvesse um limite cultural, porque não havia leis que protegiam as crianças e mulheres da violência, mas essa violência não ocorria com frequência nos casos de conflitos de terra e problemas trabalhistas, e se acontecesse a comunidade não aceitava, não compactuava.
Coloquei “respeitadas” entre aspas porque considero que roubar o fruto do trabalho de um homem e deixar sua família à míngua seja o cúmulo do desrespeito. Também porque fora do contexto de conflitos de trabalho intensos as mulheres eram muito exploradas profissionalmente, trabalhavam muito no sítio, não ganhavam nada, além de sofrerem violência doméstica.
Destaco que a única tristeza da minha mãe antes de morrer era que não se aposentou, porque afinal de contas trabalhou a vida inteira.
Esse texto foi pensado a meses atrás e coincidentemente em 22/09/2022 foi publicado no diário oficial que a CIPA passa se chamar Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio (Cipa) - https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.457-de-21-de-setembro-de-2022-431257298.
São as leis dando voz e lugar simbólico para as mulheres no enfrentamento dos desafios especificamente femininos. Que nenhuma menina cresça como eu, pensando que a participação de sua mãe em situações extremamente desafiadoras foi de coadjuvante.
Agora eu te pergunto:
- Quem lutou por essa mudança no nome da CIPA?
- Quem está lutando pelos direitos trabalhistas da mulher neste momento?
- O político que você apoia está lutando pelo reconhecimento ao trabalho feminino, pelo fim na violência no campo ou está nas mídias sociais espalhando mentiras sobre seus opositores?
Pense nisso e decida seu voto.
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